Valberto José
Jornalista, habilitado pelo curso de Comunicação Social da Universidade Regional do Nordeste (URNE), hoje UEPB. Colunista esportivo da Gazeta do Sertão e d’A Palavra, passou pelo Diário da Borborema e Jornal da Paraíba; foi comerciante do setor de carnes, fazendo uma pausa de 18 anos no jornalismo.
Evocando os clientes de outrora
Publicado em 25 de janeiro de 2024Há canções populares romantizando que recordar é viver, outras lamentando que relembrar o passado é sofrer duas vezes. Garanto que não vou padecer ao evocar, no mês em que inteira cinco anos do fechamento da loja de carnes que mantive por 26 anos no Jardim 40, os causos vivenciados, vistos e ouvidos no contato comercial com os clientes.
Seu Jonas, o primeiro cliente motorizado a parar em frente e comprar a mistura semanal, abre essa Sessão Nostalgia.
Inaugurei o açougue numa quarta-feira chuvosa e fria de junho e Jonas Campos estacionou seu automóvel em frente ao estabelecimento no sábado, sem eu imaginar que seria o cliente mais fiel entre todos. Ele nos prestigiou da semana de abertura até o último dia trabalhado, sempre com Dona Cecília, sua mulher, ou filhos buscando o que precisava em casa e ele acertando no final de semana.
Um dos amigos que o comércio me legou, Seu Jonas nos proporcionou o prazer de participarmos das comemorações de suas Bodas de Prata e de Esmeralda, além do casamento de uma filha. Em contrapartida, fez-se presente na festa familiar de meus 40 anos de idade. Não é exagero afirmar que o vinho mais delicioso que tomei foi presente dele, quando da viagem do casal a Portugal.
Professor Lucena, do setor jurídico da UEPB, passou a ser cliente quando chegou no bairro e continuou até o encerramento das atividades. Insistia para que não o tratasse de professor, enquanto, paradoxalmente, vez por outra, me chamava de mestre. Quinze dias após a nossa perda filial, nos fez uma consoladora visita surpresa.
Além do lucro que proporcionava, Daniel dos Pneus, que bem antes de cerrar as portas da loja partira à eternidade, nos divertia com suas tiradas humorísticas. “Mas Patrício, duas pontes: uma pra direita, outra pra esquerda”, foi falando, conforme ia avançando ao balcão, na volta de meu irmão, que operara o coração, após licença médica. Desde esse dia, começou a chamar o mano de Titela.
Eu cortara o dedo médio, aquele da obscenidade quando alguém se irrita com alguém, na serra elétrica, e quando Daniel, surpreso, me viu com ele enfaixado, perguntou o que acontecera. “Logo o acelerador, Valberto”, reagiu, abrindo um sorriso maroto.
Atendendo à intimação, desfrutamos uma noite de São João na casa de Daniel; reunidos todos à beira da fogueira, no extenso quintal, comendo e bebendo, lá pelas tantas começaram a soltar balão. “Mas não é proibido?”, contestou Margarida. “Na minha casa, não…”, disse, em novo sorriso, numa ironia desconcertante.
Toinho de Elvira foi outro freguês que, ao chegar, desestressava quem estava de cara fechada. Naquela manhã, encostou no balcão e foi logo pedindo que lhe cortasse um pedaço de carne sol, sem dizer a quantidade. “Mas lembre-se: minha calça é de Santa Cruz, o bolso é pequeno”, brincou, figuradamente, da pouca verba que trouxera.
Alcoólatra, há quase 40 anos não bebe. “Quem deixa de beber é como quem mata um: sabe o dia, a hora e o porquê”, embora nunca dissesse o motivo por que parara. Toinho já avisou aos irmãos o seu último desejo: quando estiver se despedindo da vida, tomar uma dose grande de cachaça.
Em 2006, Margarida acompanhara a irmã Lídia numa cirurgia em São Paulo, quando a tranquilizei que, durante esse período, eu não colocaria álcool nenhum na boca. No sábado que Eronaldo de Neide veio às compras, informei-lhe da decisão. “Então Valberto, se ela quiser que tu deixes de beber fique em São Paulo”, reagiu no seu improviso peculiar.
No auge da discussão do emplacamento ou não daquelas motos de 50 cilindradas, a mulher de Eronaldo fizera aniversário. “Neide chegou pra mim hoje e disse: estou fazendo cinquentinha tu vais me dar o quê?”, contou ele, quando os dois chegaram para as compras do churrasco comemorativo. “Vou emplacar, né”, respondeu.
Mudanças no trânsito, dificultando o acesso de clientes motorizados, afetou o comércio do bairro, motivando, com o tempo, o fechamento de lojas. Segurei por mais de uma década e quando o capital acabou, veio a decisão de fechar as portas, tomada após constatar que não sobrava dinheiro nem para o conserto do ar-condicionado do carro. “Trabalho tanto e não posso sequer ter um mínimo de conforto, segurança até”, refleti.
Tenho saudade apenas da clientela.