Amaro Pinto

Advogado, Cronista, Articulista paraibano. Fascinado, humilde e curioso aprendiz do Direito, Literatura, Teologia e Filosofia. Avante – sempre – porque somente DEUS é grande.

Antes do fim do baile.

Publicado em 22 de março de 2022

(Livremente inspirada em Jorge Luís Borges)

Foi pouco antes da pandemia que o vira macambúzio na calçada dos Correios com um enorme embrulho nas mãos, o que em nada parecia com seu feitio de sisudez e sobriedade no trajar e no andar, sobretudo considerando a solaridade do dia e as ruas cheias. Olhou-me e disparou, antes que lhe pudesse cumprimentar: “Pouco mais e nós seremos iguais em chatice e recolhimento, que coisa!”.

Um suave cumprimento, pares de palavras trocadas à socapa dos ventos num cicio de prosa, uma leve batida nos ombros e seguimos em direções opostas, em busca do nosso feitio cotidiano. Depois, o isolamento.

Até há alguns dias.

Adentrei ao recinto solene e silencioso e logo o vi, encostado numa parede enviesada, e pela fisionomia grave e sonolenta, percebi que sua alma estava mais distante que a do deitado perena e serenamente no pijama amadeirado da despedida. Saímos para fumar, porque também nisso somos de tempos outros.

Contou-me que desde antes da tal “gripezinha”, tinha se dado ao costume de viver cada vez mais distante de burburinhos e chocalhices de ajuntamentos humanos em praças e logradouros; uma vez perdida um café solitário na Livraria e cinco minutos fitando os espaços adiantes dos olhos – até as mesas de bares e os papos embotados em nuvens etílicas não o seduziam mais a deixar, exceto nas horas de labor e batente, a serenidade da casa tranquila e a companhia da solidão que fizera morada nas paredes do peito desde outrora.

Discorreu sobre o ódio destilado nos dias atuais, falou de política e de políticos, embaçou os olhos lembrando farras imemoriais em nossas madrugadas adentro pelos becos e ladeiras da Serra, cantorias de viola, o papo e a risada inesquecível, a birita rolando solta em matizes de fazer corar todos os céus de cores múltiplas.

Puxou-me pelo braço e mostrou a voz silente e que mais fala existente no aparente vazio dos campos santos, ou seja lá o nome que hoje se dá aos lugares onde descansam os mortos – todos predecessores e sósias de nós mesmos, dizia, agarrado ao meu braço vestido pelo meu paletó azul.

Veja, amigo, é aqui agora onde mais ando. Tenho encontrado tanta gente neste lugar sinistro para uns, para mim amável – que não mais via há tempo que nem minha ainda boa memória se lembrava. Ora um, outro, e outra mais ali à frente e eis que são tantos e tantas cujas recordações povoam a minha mente, a tal ponto e tamanha intensidade, que basta sentir o vezo sombrio da tristeza e ponho-me em passos lépidos para cá – fugindo da fatuidade, ingratidão, deslealdade e indiferença dos dias presentes – e antes, mas antes mesmo, que queiram trazer-me pra cá embalado no sono que nunca se acaba, como diz você, com suas caturrices, venho de pés próprios – sentir a brisa adornada de saudade que encanta os meus pensamentos mais felizes.

Antes cá do que ali, com essa gente cuja falsidade retina em sinos replicantes, chorando por quem não mais cá existe e esquecendo e sepultando em vida, tal o enterro do Amontillado, os que desta banda estão, sabe lá Deus como e até quando, inumados em vidas deleitosamente esquecidas aos sabores desumanos de quem só conhece e por isso desfralda, as bandeiras pútridas de cores cinzentas de indiferentes e infensas vontades e solertes ambições.

O que fez você nesses tempos?

Ficou em casa, casmurrando com seus livros, vendo filmes e documentários insípidos, inebriado por vinho e mesa, música e histórias fantásticas contadas e recontadas em estórias mais, fervendo o quengo por desvendar os mistérios sobre os quais o humano jamais conseguirá – pondo em forma velhos hábitos transmudados em costumes por tantas quadras que lhe conheço, murmurando preces silenciosas e dando à alma o direito de vagar sozinha, tranquila e silenciosa, pelos ares desembaçados também por nuvens líquidas – aquelas que nós gostamos.

Quem mais você viu?

Eu, caro amigo, não vi ninguém exceto aqueles dormentes na placidez dos meus sonos, talvez alguns outros poucos mais chegados à contagem dos dedos da mão esquerda – ou outros que se foram, arrebatados pelas sandices de remédios de carpir piolhos e lêndeas, as sobrancelhas e cílios brancos de pó, os cabelos tingidos pelo véu inamovível da insensatez, as mãos largadas, cruzadas e hirtas, em cima de corações que não batem mais, nem baterão, sem a reverência dos dobres dos sinos que deveriam dobrar por eles, por ti e por todos – mas que hoje estão enferrujados pela cólera indissipada refeita pelo serpentear de seres viandantes entre nós, cuja torpe e soez existência somente foi-nos apercebida quando o grunhido da fera que os lidera tirou-os dos sórdidos orifícios em que habitavam na abjeta existência – fora da Natureza.

Bati no ombro dele, suspirei e fomos tomar uma carraspana: não tinha o que responder, nem dizer.

Avante porque somente DEUS é grande.