Valberto José

Jornalista, habilitado pelo curso de Comunicação Social da Universidade Regional do Nordeste (URNE), hoje UEPB. Colunista esportivo da Gazeta do Sertão e d’A Palavra, passou pelo Diário da Borborema e Jornal da Paraíba; foi comerciante do setor de carnes, fazendo uma pausa de 18 anos no jornalismo.

Uma casa que mora dentro de mim 

Publicado em 23 de agosto de 2022

Na casa da minha infância, eu só não fiz nascer. Essa felicidade ficou com sete de meus irmãos, a maioria vindo ao mundo pelas mãos da parteira dona Mira, tão boa na obstetrícia quanto seu pai, professor Anézio Leão, no ensino de Português e na inspiração poética. Complicações de eclampsia fizeram com que eu nascesse no hoje ISEA e não no sítio do meu avô materno.

Poucos anos depois de meu nascimento, papai construiu a casa da minha infância, cuja elevação devo ter testemunhado, mas logo riscada de minha memória, de tão pequeno que eu era. Lembro de minha mãe já de amores pela casa, mas saudosa da Liberdade, um dos bairros que morara antes. “Se eu pudesse colocava rodas nesta casa e a levava para lá”.

Não obstante, recordo quando papai resolveu levantar o banheiro da casa, até então inexistente, bem distante, quase no fundo do longo quintal. Seu Gino, um velho pedreiro que gostava de tomar aquela que abre o apetite, foi o responsável pelos serviços.

Ao primeiro aceno de minha mãe para o almoço, ele pedia para um de nós ir pegar o estimulante na bodega mais próxima. Foi numa busca dessas que Patrício, o neto, revelou a prematuridade de sua disposição etílica.

Quando seu Gino perguntou quem iria ver o produto, foi o primeiro a se dispor. Levou um copo de casa e rumou à quitanda de seu Geraldo; ao retornar, entregou-o ao velho.

– Parece que beberam um pouquinho, suspeitou, intrigado com a pouquidade da dose. O mano, que silencioso chegara, permaneceu mudo e saiu de mansinho; depois, na algazarra distante de irmãos e primos, a confissão do delito. “Bebi pouquinho, mas bebi”.

Junto ao banheiro, ficava a lavanderia de roupas. Foi nessa lavanderia que minha mãe, alarmada com a sujeira do meu corpo, me deu um banho, esfregando com bucha vegetal, quase me arrancando o couro; enquanto me esfregava, queixava-se à vizinha do desasseio do filho.

Na frente da casa de minha infância tinha um pé de castanhola, cortado, acredito, quando o asfalto transformou a Almirante Barroso em avenida. Um senhor costumava passar pela rua toda semana vendendo rapé, anunciando “olhe o cheiroso”; contrapondo, a molecada gritava “tem pimenta” e o velho, na zanga, vociferava nomes de todos os tipos.

Certa vez, ao avistar o vendedor, meu irmão Afonso subiu no pé de castanhola e, se escondendo entre as folhas, iniciou uma série de “Tem pimenta, tem pimenta…”. O velho girava para todo lado, procurando, e, não vendo ninguém, se vingava na nossa mãe.

Como fiquei triste naquela manhã que papai colocou as gaiolas de pássaros para o banho de sol na frente da casa! De repente, avistou-se a porta de uma delas aberta e o casal de canários nos galhos das árvores da escola em frente. Ainda hoje sinto saudade dos fujões.

Numa tarde de terça-feira de carnaval, depois de ver o passeio de foliões pela rua, estava no trabalho de embalagens dos produtos vendidos por papai, quando pausei um momento para tomar água.

Fui à sala de jantar, peguei alguma coisa no armário e quando me virei, observando a rua, avistei um vulto na janela, parado, silencioso, me encarando. Soltei um “ai” bem alto, quase soltando o que estava à mão. O vulto foi tirando a máscara e me olhando pleno de satisfação. Era meu tio Clóvis fantasiado de papangu.

Foi na casa de minha infância que fabriquei a maioria de meus brinquedos, principalmente carros. Muitas das vezes nem chegava a concluir e os irmãos começavam a mexer neles; uma ira me vinha, danava os inconclusos no chão e recomeçava tudo de novo.

Nunca esqueci o tijolo manual que risquei e o transformei detalhadamente no ônibus que rodava na linha Campina Grande Boqueirão.

Quantas e quantas vezes fui dormir de madrugada, naquela casa, acompanhando minha mãe nos serões em seu serviço de costura. Pegava os carrinhos menores e os dirigia pelas ruas abertas do móvel da Singer de dona Cleonice.

Na casa de minha mãe morei até aos 12 anos, junto com mais sete irmãos e uma tia, quase irmã. Ainda bem que não vi – e se vi não me lembro – a pressão de meu papai sobre minha mãe para que ela assinasse a venda da casa, subscrição grafada com lágrimas maternais.

“Um sítio que anda comigo”, confessa Gonzaga, o Rodrigues, na capa de seu livro que em 1989 aportou em minha estante e de onde sempre salta às minhas. Parodiando-o, poderia afirmar que a casa da minha infância mora comigo. Mas não! Acho que a casa da minha idade puerícia mora dentro de mim.