Vanderley de Brito
Historiador, arqueólogo, genealogista e atualmente é presidente do Instituto Histórico de Campina Grande (IHCG).
Páscoa, um rito de ressurreição
Publicado em 28 de março de 2023Na semana passada, uma jornalista da TV Borborema me ligou pedindo que eu desse uma entrevista sobre a Páscoa. Não tenho atração pelo assunto, mas também não podia recusar, pois a imprensa sempre tem dado especial atenção aos nossos projetos. A entrevista era pra já, uma saia justa como sempre, mas se me procuraram é porque não queriam abordar o sentido mercadológico do evento, mas a evolução histórica que culminou na secularização da festa pascal. Tomei um banho rápido, me vesti e fui para a janela pensar sobre como sistematizar o tema, pois a entrevista seria nos estúdios da TV, no andar vazado do Edifício Rique, no centro de Campina Grande, e, portanto, tinha tempo ainda, já que em cinco minutos eu estaria lá.
Num só esforço deslizei o vitrô da janela corrediça e fui envolvido pelo sopro do vento. Talvez por ser asmático eu penso melhor ao sabor da brisa, que me aguça o estado sensorial e é para mim como uma sacerdotisa. Temos uma relação íntima, pode até soar excêntrico, mas costumo cumprimenta-la toda vez que abro a janela: “bonjour Mademoiselle Brise”.
Com o tema em mente, ao fôlego de ar corrente, me ocorreu que a comemoração da Páscoa reúne três tradições: a judaica, a cristã e a pagã, que são pouco conciliáveis entre si, mas, de modo geral, remontam ritos de passagem da morte à ressurreição. Etimologicamente falando, o termo “páscoa” vem do hebraico pesach, que quer dizer “passagem”. Na perspectiva judaica, rememora treze séculos antes de Cristo, época do reinado do faraó Ramsés II, quando se teria dado a libertação do povo de hebreu do domínio egípcio e o início do seu percurso em direção à terra prometida, ou seja, aponta o renascimento do judaísmo. Já a Páscoa cristã tem base na primeira, uma vez que os fundadores do cristianismo eram judeus, e como Jesus ressuscitou num domingo de Páscoa, para os cristãos a comemoração passou a rememorar a ressurreição de Cristo para salvar a humanidade de seus pecados, a humanidade ganhou uma nova chance, e isso também aponta um renascimento.
Uma característica bem conhecida da Páscoa cristã é o fato de que a celebração é realizada em datas imprecisas. Os critérios para definir essa data foram estabelecidos durante o Concílio de Niceia, realizado pelo Imperador Constantino em 325 d.C. quando se decidiu que a Páscoa seria comemorada após o equinócio de primavera, que no Hemisfério Norte acontece entre os dias 20 e 22 de março, assim, depois do fenômeno se espera a primeira lua e o próximo domingo após a lua cheia é o domingo de Páscoa.
De todo modo, tanto o pesach judaico quanto a páscoa cristã têm origens numa tradição antiquíssima de povos agrícolas do Velho Mundo de comemoração ao início da primavera, fase de radical transformação ambiental e do ressurgimento da vida. A partir do medievo, no início da primavera, quando a vida no Hemisfério Norte se renova, os povos presenteavam-se com ovos de galinha, ou de pata, cozidos, tingidos e ricamente coloridos com desenhos, desejando-lhes a passagem para uma vida feliz. O ovo representa o começo da vida e inventava-se que estes ovos, tão diferentes, eram colhidos em ninhos de coelhos, animal símbolo da primavera, pois é o primeiro fauno a sair de sua toca ao fim do inverno.
Portanto, as tradições litúrgicas judaica e cristã nada mais são do que a adaptação de um costume agrícola muito antigo de se comemorar a ressurreição da vida. Já quanto o ovo de chocolate, inequivocamente é elemento tardio no rito, pois o cacau só chegou à Europa depois da descoberta do Novo Mundo e foi na França do século XVIII que confeiteiros modelaram pela primeira vez ovos de chocolate. A novidade alimentou a fantasia dos ovos de coelhos e o mercado adaptou a tradição de se trocar ovos de chocolate na data religiosa cristã.
Pronto. Como resultado de minhas leituras esparsas e vivências, sob o frescor dos alísios pude sistematizar um raciocínio histórico sobre a Páscoa, pois, como um oráculo, o vento me sopra a essência das coisas (literalmente). Preciso agora fechar a janela e ir conceder a entrevista, mas antes, tenho de concluir o rito: “Au revoir, Mademoiselle Brise”.