O TOURO CONVERTIDO
Publicado em 20 de setembro de 2024(Crônica de Olímpio Rocha)
Era uma vez, em Campina Grande, cidade de grandes personalidades e histórias, um lugar onde a boemia florescia como uma roseira teimosa em terreno árido: o Restaurante Miúra.
Ali, nomes históricos como Ronaldo Cunha Lima, Raimundo Asfora, Humberto de Campos, Shaolin, Biliu de Campina, Marcio Rocha, Assis Costa, Mica Guimarães, Hamilton Fechine, entre outros, brindavam à vida. O ambiente era regado a cerveja, conhaque, uísque, vinho, risadas e, por que não, nuvens de fumaça que subiam ao teto como preces silenciosas — ou quase silenciosas.
Eu passei a frequentar o Miúra a partir de 1999, aos 13 anos. Naquele ano, meu motivo para estar ali era bem específico: assistir aos jogos do Fluminense na Série C, quando jogadores como Roger, Roni, Marcão e Magno Alves davam suas arrancadas e chutes rumo à glória.
A TV do Miúra se transformava em uma janela para o estádio, e eu, tomando minha Coca-Cola, levado por meu pai, Marcio, acompanhava cada lance com emoção.
Enquanto isso, painho degustava seu conhaque, tranquilamente inserido nas rodas de conversa com os frequentadores de outrora. Ele trocava histórias e piadas com a turma, enquanto eu vibrava a cada gol do Tricolor, que acabou subindo para a Série B.
Depois, já em 2006, na campanha de Zé Maranhão ao Governo, havia um comício marcado para as Malvinas, que teria a participação de Reginaldo Rossi, o Rei da Brega, como principal atração. Fui com painho e Assis Costa buscar Rossi no aeroporto, mas, ao chegarmos nas Malvinas, já tinha passado da meia-noite, horário limite para os comícios, e ele não pôde cantar no evento, para o qual tinha sido contratado. Para não perder a viagem do pernambucano, a solução foi fazer o show no Miúra, privado, para os eleitores e apoiadores do velho Mestre de Obras. Ali, eu já podia tomar meus goles de cerveja enquanto curtia o inesquecível Rei do Brega. Foi massa demais!
Mas o Miúra não era só lugar de filosofias baratas e discussões sobre política e futebol. Havia uma tradição peculiar: todos os anos realizava-se o “Concurso Moedor do Ano”. Era como um carnaval fora de época, com o tilintar dos copos e o riso rouco dos boêmios.
Cada frequentador, ao longo de um ano, ia acumulando histórias, tragos, ressacas monumentais, e, no fim, os mais bravos guerreiros etílicos eram coroados.
Era um evento digno de Macondo, onde cada moedor carregava consigo a aura de um herói trágico, erguendo seu troféu como quem desafia o destino, as horas da madrugada e, claro, o fígado.
No centro daquele cenário, não podemos esquecer de quem orquestrava o espetáculo. Sob as ordens (nem sempre) afáveis do proprietário Valmir, três personagens se tornaram tão icônicos quanto os próprios clientes: os históricos garçons Alemão, Espanha e Dominguinhos. Cada um, com seu jeito próprio, sabia como transformar uma simples noite em um evento memorável. Alemão, com sua postura (quase) firme e sorriso disfarçado, atendia com precisão cirúrgica. Espanha, sempre rápido (ou não), parecia ler pensamentos e trazer o próximo pedido antes mesmo que ele fosse feito.
Dominguinhos, o mais afetuoso (será?), tratava todos como velhos amigos, servindo doses de atenção e cuidado junto às bebidas.
Naquele espaço, a alma livre da boemia se revelava em toda a sua glória: copos cheios e histórias mirabolantes se entrelaçavam e o mundo parecia um pouco menos sério, um pouco mais leve, entre um gole e outro. Era um refúgio da moralidade severa, um oásis no qual a vida era para ser vivida com toda a intensidade que só um bom trago e uma boa amizade poderiam proporcionar.
Mas, como em toda boa crônica da vida real, eis que o inesperado aconteceu. Agora, os sons são outros, mas a ironia permanece. Onde antes se pedia uma cerveja, hoje se eleva uma oração. Onde se fumava e se bebia até tarde da noite, agora se busca redenção e consolo espiritual.
A boemia, assim como os dias de juventude despreocupada, foi varrida pelo vento do tempo. E onde outrora ressoavam risadas roucas de quem fumou um cigarro a mais, agora ergue-se algo… diferente. Muito diferente. Onde antes reinava o caos alegre, com suas mesas cheias e histórias exageradas, levanta-se, imponente, a Igreja Evangélica Verbo da Vida. Ah, que ironia dos deuses – ou seria de Deus?
Agora, naquele mesmo local onde se soltavam gargalhadas de madrugada, ouvem-se hinos e pregações inflamadas. O som do copo brindando foi substituído por aleluias e améns fervorosos. Onde antes cada um fazia sua oração própria ao deus Baco (ainda que em silêncio), hoje se canta em uníssono, com as mãos erguidas aos céus. A fumaça que subia ao teto não mais é de cigarros, mas das velas dos crentes iluminando o caminho para o divino.
Há quem diga que o próprio Shaolin, lá de cima, deve estar rindo dessa virada divina. Afinal, qual o sentido da vida sem a ironia? Agora, as almas que ali frequentam buscam outra espécie de salvação – não mais aquela efêmera que se encontra ao fundo de um copo, mas aquela eterna, prometida ao final de um culto.
Sim, o Miúra, antes palco das maiores epopeias boêmias, onde ecoavam os gritos dos bêbados e as discussões filosóficas de botequim agora é um templo de fé, onde se erguem as mãos ao céu, não mais para um brinde, mas para a redenção. E onde o troféu de Moedor do Ano tinha seu lugar de honra, hoje repousam bíblias e hinos de louvor.
Se isso não é a ironia em sua forma mais refinada, digna de Humberto de Campos e Mica Guimarães, nem Gabriel García Márquez e Dias Gomes, com seus toques mágicos, poderiam imaginar uma mudança mais fantástica. O concurso anual deu lugar ao culto dominical, e os antigos moedores, agora, provavelmente olham lá de cima, com um sorriso sarcástico, enquanto as preces se elevam ao céu. Porque, afinal, se há algo que permanece nesse mundo – seja no Miúra ou na Verbo da Vida – é o desejo por um pouco de transcendência.
O “Miúra”, que etimologicamente significa uma espécie de touro indomável, foi domado, ou melhor, exorcizado, e deu lugar ao Templo. Se antes o “brabo” do nome representava a força da boemia, agora os bravos são os pastores, conduzindo suas ovelhas por caminhos de luz, longe das tentações do álcool e das risadas sem controle. O touro que antes corria solto pelas noites de Campina Grande agora repousa, manso, ao som de cânticos e pregações.
E assim, Campina Grande, sempre surpeendente, nos presenteia com mais uma cena digna de seu realismo fantástico. O lugar, que já abrigou poetas da boemia, agora sedia sermões de fé. Talvez, em algum ponto do universo, um anjo e um boêmio brindem a essa reviravolta com um sorriso no canto da boca. Afinal, entre a boemia e a redenção, deve haver apenas uma esquina.
O que nos resta é a constatação: o Miúra foi-se, mas a vida continua. Com menos cigarro, menos cerveja e, certamente, muito mais améns. Que o último de nós apague as luzes quando o Manoel de Carne de Sol se transformar em uma Catedral…