Valberto José

Jornalista, habilitado pelo curso de Comunicação Social da Universidade Regional do Nordeste (URNE), hoje UEPB. Colunista esportivo da Gazeta do Sertão e d’A Palavra, passou pelo Diário da Borborema e Jornal da Paraíba; foi comerciante do setor de carnes, fazendo uma pausa de 18 anos no jornalismo.

O discreto professor e o mau aluno

Publicado em 1 de novembro de 2022

Ainda me assusta a memória o golpe acidental da faca trincha com que cortava palma que quase decepava o indicador da mão esquerda do meu tio Clemílcio, naquela manhã de sua rotina de alimentar as reses do curral do meu avô Zé Paulino. Quase 60 anos depois, na madrugada de domingo, 23 de outubro, o golpe foi na família, após ele fechar os olhos à vida terrestre e abri-los à eternidade. 

A incisão não mutilou o dedo, mas o deixou com uma acentuada sinuosidade na ponta, que se meu tio fechasse a mão e mantivesse o indicador apontando uma direção, o interlocutor forçosamente poderia olhar para outra. Clemílcio encarava a anomalia com boa dose de humor, constituindo-se em constantes motivos de brincadeiras e gozações com os amigos. 

Quem via a deformação pela primeira vez, sem conhecer a história, pensava ser sequela do seu labor de açougueiro, oficio que abraçou pouco tempo depois do acidente, levado pelo mano Clovis. Após adquirir experiência no ramo, Clemílcio manteve por mais de três décadas um açougue no bairro da Palmeira, inicialmente em parceira com Gerson Reis. 

Primeiro neto da família, não fui acostumado a chamar os irmãos de minha mãe de tio. Isso serviu de motivo a uma relação de irmandade – pela diferença de idade, respectivamente de seis e nove anos – com os caçulas Rita e Clemílcio. Com este, lembro de ter jogado futebol e ser artilheiro nos chutes, ele no gol. 

Marcante minha infância com Clemílcio na nossa parceria na lida com os afazeres rurais, durante as férias escolares. Quantas e quantas vezes fomos juntos, eu montado no jumento carregado de ancoretas, buscar água nos tanques de pedra das terras do meu avô, ou nos de dona Nana, moradora das terras de Aluísio Silva, concessionário da Chevrolet. 

Um dia, ele me incentivou a ir sozinho. Subi no animal morrendo de medo e, após controlar o estado emocional, já na metade do caminho, o jegue cismou de não querer ir em frente, teimando em aprumar pela trilha lateral. Após três tentativas frustradas de redirecioná-lo, pulei da sela, segurei a rédea com firmeza e sai puxando-o até chegar nos tanques. 

Foi na adolescência, morando em Patos, que pude usufruir outra grande virtude desse tio quase irmão, a hospitalidade. Nas férias, geralmente papai nos liberava a passar em Campina Grande, tendo a casa de Clemílcio servindo de estadia. Junto a Zefinha, a mulher, como nos acolhia bem! 

Em mensagem online enviada de Santa Catarina, minha irmã Socorro sintetizou a capacidade acolhedora de Clemílcio e o nosso reconhecimento. “Meu tio, que Deus te acolha, como fui acolhida em tua casa. Gratidão por tanta generosidade”. 

O acolhimento não se resumia à casa, estendia-se por toda cidade, pois me levava para quase todo canto aonde fosse, por onde andasse. Ao matadouro, ia quase que diariamente escolher a rês, cuja carne venderia no dia seguinte em seu açougue; no banho a vapor de Corisco, nunca sem antes uma passagem pelo bar de Josafá, tendo a sensatez de não me oferecer bebida alcoólica; Moacir do Bode, no Monte Santo, barraca de Tião, perto de casa… 

Certo domingo pela manhã, após organizar o balcão e passado o maciço de clientes na loja, saiu comigo e minha “irmã” Rita, no seu Fusca da época, a passear pela cidade. Como me senti bem no bairro do 40, nas proximidades da escola Melo Leitão, e testemunhar o aparecimento das primeiras ruas e casas no terreno que deveria ser um loteamento. 

Meu tio gostava de futebol e era torcedor do Treze, simpático também ao Santa Cruz de Recife. Numa tarde de sábado, levou-me ao Estádio Presidente Vargas” para ver o jogo do Palmeira, time amador do bairro e qual era dirigente, válido pelo certame da Liga. 

Boêmio sem tempo para a boemia, sempre arrumava um jeito de sair, e saia sempre. Durante a semana, os bares que frequentavam com os amigos, Chico do Bode o mais presente. No sábado, arriscava uma esticadinha às casas especializadas em Bodocongó, quase sempre voltando ao lar pela madrugada. Coincidência, partir numa madrugada de domingo… 

Num desses périplos, chegou a me levar à casa de Anita, ignorando meus 15, 16 anos. Lá, apesar da ousadia de me levar, comportou-se com sobriedade, tomou sua bebida sem me oferecer, e nem me incentivou a “brincar” com alguma daquelas meninas. 

Mesmo sem tempo para tal, meu tio Clemílcio foi um grande boêmio. Também um discreto professor… eu é que fui um mau aluno.