Vanderley de Brito

Historiador, arqueólogo, genealogista e atualmente é presidente do Instituto Histórico de Campina Grande (IHCG).

O crânio de Goethe

Publicado em 4 de julho de 2022

Mais uma noite insone, são quase quatro da madrugada e essa é a terceira vez nessa noite que sou despertado pela dor. Com ansiedade, me dirijo à cozinha, tomo um analgésico e vou para a janela esperar o efeito de alívio surtir. Não é apenas uma dor tátil, é dor neural, lenta e contínua, dessas que aperta o lobo cerebral com estímulos intensos, como que todos os meus circuitos estivessem ativados no modo “tortura”. Para me consolar, lembrei de Nietzsche: “O que não me destrói, me fortalece”, mas o filósofo falava de outro tipo de dor, a dor espiritual, e a minha é física mesmo, provém de uma lesão óssea e tecidual resultante de uma recente cirurgia odontológica, onde minha gengiva inferior foi cortada a bisturi, profunda e longitudinalmente, e uma série de pinos de titânio me foram introduzidos no osso da mandíbula.

Toda minha calota craniana dói, mas tenho de ter paciência, estou em recuperação, um dia passa. Resolvi então buscar distração, que é um mecanismo analgésico natural. Pode parecer macabro, mas todo arqueólogo que se preze tem em casa um crânio humano para fins de estudos e reflexões, e eu, que não sou diferente, fui buscar o meu para lhe analisar a estrutura e questionar os motivos dessa minha dor. Tirei-o da caixinha, onde o guardo, e, com ele na mão, estendi o braço à altura dos olhos, me sentindo o próprio irresoluto Hamlet.

crânio humano consiste em cerca de 30 ossos, em sua maioria conectados uns aos outros por articulações ossificadas, as chamadas suturas, é uma peça fantástica! Girei-o entre os dedos e sua parte de trás logo me fez lembrar Johann Wolfgang von Goethe, um dos maiores poetas e dramaturgos de todos os tempos. Lembrei Goethe porque, pouca gente sabe, mas ele se ocupava também com a História Natural e, num tempo em que era heresia alguém falar em público que o homem advém dos primatas, ele, muito antes de Darwin, já defendia a evolução das espécies como uma norma de hereditariedade e influências do meio.

A velha escola científica de fins do século XVIII, não só negava a origem animal do homem, como também acreditava que o humano se diferenciava dos símios porque não possuía o osso intermaxilar, um ossinho do céu da boca presente em todos os animais, e foi Goethe, na análise de um crânio humano, quem descobriu que o homem já possuiu o intermaxilar e, na sua análise, localizou a lembrança atrofiada desse osso, quase invisível, encaixado na sutura entre os dois maxilares. Logicamente, os cabeça-dura da época o ridicularizaram, mas hoje sabemos que temos sim um resquício do intermaxilar e, no estado embrionário, esse osso aparece no feto humano como osso independente, ou seja, é mérito de Goethe a descoberta do osso intermaxilar humano, colocando, enfim, o homem na linhagem animal e sugerindo que ao longo dos milênios esse osso atrofiou para o homem poder melhor articular palavras.

Goethe era um grande observador, e outra reflexão interessante desse naturalista analisando uma calota craniana foi sua “teoria vertebral do crânio”. Foi uma descoberta do acaso, pois, uma vez, andando pelos campos da Itália o poeta de Fausto viu na areia de um antigo cemitério judaico um crânio de carneiro esbranquiçado, que pelo ângulo em que estava exposto, o fez perceber que o crânio animal é um invólucro formado de vértebras transformadas. Que coisa né? Quando Goethe voltou ao seu gabinete de história natural começou a estudar a coleção de crânios que possuía, e depois de dias fazendo comparações, desenhando e tomando notas, sob a perspectiva anatômica, chegou à conclusão das transmutações das espécies. Ele foi uma figura surpreendente, morreu em 1832, aos 82 anos, mas suas teorias nunca foram aceitas pela comunidade científica de sua época.

Não sou nenhum Goethe, longe disso, sou apenas um observador comum. Depois dessa reflexão científica setecentista fiquei admirando o crânio e procurando os ossos correspondentes em mim mesmo. Que estrutura complexa e magnífica é o recipiente dos órgãos dos sentidos e do cérebro, alguns o chamam até de “a casa da alma”. Mas, como também não sou um Hamlet, hoje eu não estou para poética, cada um vê as coisas conforme o seu estado de espírito, e eu, com essa dor medonha na cabeça, só consigo ver nesse crânio em minha mão estendida o quanto somos frágeis e ínfimos.