Valberto José

Jornalista, habilitado pelo curso de Comunicação Social da Universidade Regional do Nordeste (URNE), hoje UEPB. Colunista esportivo da Gazeta do Sertão e d’A Palavra, passou pelo Diário da Borborema e Jornal da Paraíba; foi comerciante do setor de carnes, fazendo uma pausa de 18 anos no jornalismo.

O brilho daquele olhar (II) 

Publicado em 16 de fevereiro de 2023

Nunca tinha visto tanta insensibilidade em um ser humano. “Estou bem, vou ficar viúva”, celebrou Lícia, naquele início de tarde em que iria para o trabalho e eu vinha, em mais um encontro casual, mais de ano depois, e lhe perguntei como estava. Não senti o impacto da resposta perversa, pois dita com extrema tranquilidade; no avançar do tempo fui refletindo essa dureza de coração.

Em outro encontro despretensioso, Lícia foi logo confirmando ter deixado o moço e, na maior, como era tempo das festas juninas, exprimiu o desejo de passear pelo Parque do Povo. Não é que o sensível aqui aceitou a sugestão e no sábado seguinte estávamos, discretamente, curtindo o Maior São João do Mundo.

Destarte, ficamos nos vendo todos os dias, ela passando pelo meu trabalho, após cumprir seu expediente, embora o relacionamento ainda fosse de amizade. Até que, mais uma vez no “PP”, ela, devagarinho, foi tocando a minha mão e eu, naquela de que “se oferece a mão, toda se oferece”, aceitei a cortesia.

Continuamos de mãos entrelaçadas sem maiores intimidades e, certo dia, mais de um mês depois, sugeri a ela conhecer o apartamento que nos dias extras de trabalho eu dormia. Deixou-me animado com um “vamos, sim”.

Todo arrumado, passei pela casa dela, pedi um táxi e rumei para o bairro daquela escola de samba rival à da agremiação onde ela morava. Já fechei a porta do carro colocando a mão no bolso tentando pegar as chaves. De modo que abri o portão com certa rapidez, subimos a escada e com facilidade escancarei o “AP”.

Lícia já entrou com o olhar circulando o ambiente, enquanto eu permaneci em pé para em seguida, aos poucos, ir me sentando. Ela continuou em pé, os olhos por todos os lados, até que fixou o olhar em mim, e arrematou: a gente veio fazer o que, aqui?

Não lembro o que respondi, na tranquilidade de minha reação diante da inquisição desmotivadora. Calmamente, mostrei todos os cômodos do apartamento, que não eram muitos, passamos uns 10 minutos ainda e descemos a escada da volta. Sorte que vinha um ônibus, ela aceitou a proposta de tomar o coletivo e descemos no centro, onde, na lanchonete mais próxima, fizemos um insosso lanche.

Abastecidos, pegamos outro táxi, rumamos de volta à sua residência, sentamos no sofá, como de costume e, em 10 minutos, disse-lhe que estava tarde e já ia. Continuamos nos encontrando, ela passando pelo meu trabalho, me pegando para o jantar em casa, numa rotina sem maiores alimentações.

A confirmação de que ficara viúva, dois meses depois do nosso encontro no “PP”, não lhe deixou triste e nem alegre; sequer comentou a situação. Na minha, continuava refletindo essa insensibilidade, enquanto ela, voluntariamente, procurou, finalmente, iniciar a terapia naquele divã de encosto e braços.

A insensibilidade de Lícia estendia-se ao seio familiar, na confissão de que não gostaria de ter filho; também se estendia à religiosidade, pois rejeitava entrar numa igreja. Embora gostasse de estar com Lícia, até me sentia bem ao seu lado, essa impassibilidade parecia agir no meu inconsciente, me impedindo de apresentá-la à minha família, assumi-la verdadeira, enfim.

O Natal daquele ano foi com Lícia, passagem de ano foi na casa de meus pais, pois confraternização da família materna. Até uma hora antes de romper o ano, fiz-lhe companhia, quando peguei o rumo de lar sagrado, prometendo voltar na primeira hora do ano novo.

Confraternizei com os meus, tomei minhas doses e, minutos depois do “apagar das luzes”, voltei ao lar de Lícia. Assim que dobrei a esquina, avistei aberta a parte de cima da porta e a encontrei, reclinada naquele divã desconfortável, à minha espera.