Valberto José
Jornalista, habilitado pelo curso de Comunicação Social da Universidade Regional do Nordeste (URNE), hoje UEPB. Colunista esportivo da Gazeta do Sertão e d’A Palavra, passou pelo Diário da Borborema e Jornal da Paraíba; foi comerciante do setor de carnes, fazendo uma pausa de 18 anos no jornalismo.
No ônibus, pé no freio e a mão na orelha
Publicado em 30 de maio de 2022Malgrado discordar de que “toda unanimidade é burra”, acabo por endossar o pensamento rodrigueniano ao me incluir na frase massificada em propaganda do passado de uma bandeira de postos de combustíveis dizendo que “todo brasileiro é apaixonado por carro”. Esse fanatismo é moderado e tem origem familiar, visto que meu pai e tios foram profissionais do volante.
Papai chegou a possuir um caminhão nos meus primeiros anos de vida, do qual tenho vaga lembrança, e depois que o vendeu passou a ser motorista de lotação, ou seja, de ônibus urbano, num curto período. Não à toa um dos meus sites preferidos é ônibus & transportes.
Depois que ele aderiu ao comércio, passei a ser mais usuário do transporte urbano, pois com oito, nove anos já era encarregado de parte das compras dos suprimentos necessários para o negócio andar, na Rua João Pessoa e Feira Central. Por duas e três vezes no mesmo dia, cheguei a ir nesses locais, motivando a cobrador amigo só receber uma passagem.
Obrigação que se tornava divertimento, a exemplo de testemunhar a disputa por passageiro. Até a perícia que o motorista fazia para contornar os buracos ou a poça de água e lama no período chuvoso era motivo de diversão. Calçamento não existia a partir da entrada da rua Rio de Janeiro, no Quarenta, sentido bairro.
No inverno, em vários locais da Almirante Barroso formavam-se pequenas lagoas, algumas tomando toda largura da hoje avenida. A maior tomava o espaço onde hoje divide a localização do call center e o hipermercado.
Antes, próximo ao giradouro, o posto fiscal de seu Mário divertia a criançada com o “canceleiro” controlando a passagem dos veículos e amedrontando motorista que carregava mercadoria no mole.
A “morcegagem” dos meninos vadios nos ônibus era causa de preocupação dos motoristas. Ronaldo Barrão era o mais “pegador de ar” com essa brincadeira, e sua ira divertia até passageiros. Ele parava o carro, tirava a alavanca da caixa de marcha, descia e corria atrás dos moleques, ameaçando-os com a peça. Mas nunca agrediu nenhum deles.
As aventuras amorosas dos condutores despertavam a precocidade fofoqueira dos meninos daquele tempo. “Fulana está flertando motorista tal, cicrana está de olho naquele que é casado”, comentava-se.
Lembro da vizinha que paquerava um profissional comprometido. Quando o ônibus que ele conduzia se aproximava, ela atravessava a rua, devagar e, toda faceira, com leve balançar nos quadris, abria o sorriso discreto, colhendo a cumplicidade do olhar motorizado. “Ela puxa à mãe”, dizia um dos coleguinhas.
Perto do horário de almoço, encontravam-se eu e mais três na calçada e ouvimos um barulho na lateral da Escola Apolônia Amorim. Corremos para lá e surpreendemos duas mulheres brigando por João Mourão, um moreno que mesmo faltando alguns dedos na mão, foi um dos motoristas mais afamados de então. “Você só vive tomando ‘injeção’ de João Mourão”, acusava uma, para deleite da gente.
O mano Afonso, hoje comerciante em Teresina, iniciou a vida profissional como cobrador de ônibus, logo deixando, atraído pelo convite familiar, entrando no ramo de carne. Um dos diretores da empresa chamou-o a atenção, pois teriam lhe dito que ele estava dirigindo o ônibus. “Só se colocaram a direção na cadeira do cobrador”, retrucou.
Dois acontecimentos ficaram marcados na minha memória quando papai foi motorista da Autoviária Rainha da Borborema, que depois se transformou na Borborema e operava as linhas das ruas Rio de Janeiro e Odon Bezerra ao centro. A empresa está fora de circulação desde a última licitação do sistema de transporte público da cidade.
Muito criança, costumava dar circular (hoje é proibido) no coletivo, enquanto papai cumpria o seu horário. Obvio que todo profissional do setor é conhecido pela população do bairro, inspirando o ditado de que “fulano é mais conhecido do que motorista de ônibus”.
Morávamos na Rua Sergipe, entre a Rua Alagoas e a que titulava a linha, trecho parte do seu itinerário. Em horário de folga, papai foi às compras no Mercado Público do bairro; percebi depois sua saída e aperreei mãe para acompanhá-lo.
Na concordância de dona Cleonice, saí em disparada pelas ruas da Liberdade, sem que avistasse sequer o vulto paterno. Desandei a chorar, quando apareceu um rapaz e perguntou se eu estava perdido. “Seu pai não é o motorista da lotação? Sei onde fica sua casa”. Pegou-me pela mão e me devolveu aos braços maternos.
No ponto final, depois que os passageiros desciam, era comum o condutor descer também e ir tomar uma água, um café e até fumar. Nas voltas que eu dava em horário de trabalho paterno, nesses momentos de parada, costumava sentar na cadeira, agarrar a direção e brincar de motorista.
Naquela manhã, o ônibus que papai conduzia circulou pelo bairro da Liberdade até chegar ao centro e estacionar no ponto final, na Avenida Floriano Peixoto, antes do Cine Capitólio, onde funcionou o Bar do Camaleão. Foi ele descendo e eu “assumindo” a direção.
Estou lá, todo feliz, brincando de motorista, rodando a direção para um lado e para outro. De repente, o carro vai saindo, devagarinho, saindo, saindo. Antes que ele embalasse, Zé Patrício subiu sem que os sapatos roçassem os batentes do carro, pisou no freio e o parou. Foi o pé no freio e a mão na minha orelha.
Ainda me tirou da cadeira com as mãos de uma forma tão desesperadora, que bati com a bunda na urna coletora dos bilhetes de passagem. Foi a última vez que abracei aquele volante, mas ainda hoje sinto a dor do puxão de orelha.