Vanderley de Brito
Historiador, arqueólogo, genealogista e atualmente é presidente do Instituto Histórico de Campina Grande (IHCG).
Nas escarpas sertanejas da Borborema
Publicado em 22 de março de 2022Numa dessas manhãs de setembro, há uns trinta anos, à beira da Rodovia Transamazônica, ermo impreciso no trecho entre os municípios de São Mamede e Patos, pela primeira vez vi as escarpas sertanejas do Planalto da Borborema. Para quem não sabe, a Borborema é o maior monumento natural da Paraíba (literalmente), uma imensa massa de superfície elevada que cruza norte-sul o Estado, como uma sela, mas sem estribos. No sentido longitudinal, tomando por base a Rodovia 230, o Planalto soergue depois da cidade de Riachão e decliva na cidade de Santa Luzia. Com altitudes irregulares acima de 400m, possui 150 km de largura de uma borda a outra.
Obra antediluviana, do começo dos tempos geológicos, o soerguimento dessa imensidão residual deve ter estabelecido o caos em meio a ordem, aflorando em sobressaltos convulsivos do ventre da terra mãe, multiplicando-se em solevos fulminantes, como as cabeças da hidra, numa série de embolias tectônicas espetaculares, espantosas e ensurdecedoras. Não há meios de saber essas coisas, pressupõe-se, mas enquanto escrevo estas palavras, imaginar esse cenário cataclismo me faz também estremecer por dentro.
Agora, inerte, deitado num delicioso abandono, o Planalto da Borborema é solo firme para inúmeras cidades, campos e histórias humanas.
Seu aclive para o Sertão é esplendoroso, indômito e inteiramente digno de apreço, exibindo escarpadas ameaçadoras, contornos curvilíneos e ostentosos picos recobertos com um manto aveludado de relva. É um cenário belo e extravagante ao mesmo tempo, como a moda parisiense da belle époque. Em tudo há capricho e arte.
Pensando em voz baixa, olhei para a muralha geológica que obstrui o horizonte meridional e, franzindo os olhos pela luz excessiva, vi pela primeira vez o Pico do Jabre, o Everest paraibano com seus 1.197m de altitude. Não devo aqui entrar em detalhes, aliás bastante interessantes, a respeito do topônimo “Jabre”. Farei em outro artigo.
Em todo caso, há anos venho estudando o que sobrou da língua dzubuquá dos antigos índios cariri, e com bases teóricas e compatíveis cheguei à conclusão que o topônimo Borborema é um vocábulo derivado da expressão bouró bu yema, resultante da união de “bouró”, que traduz dacolá; mais “bu”, que significa pé, correr; e “yemo” que quer dizer arriba, em cima. Portanto, bouróbuyema seria um termo para definir “paragens onde se anda por cima”, no sentido pleno da palavra: planalto. Porém, por força do sotaque luso o termo foi adulterado para “burburem”, pois os portugueses economizam vogais, por exemplo: manhãs de setembro é “mnhãs d’stembr”.
As palavras têm poder, mas o silêncio tem muito mais. Por isso, consoante à minha própria vontade, diante daquele gigante, fleumático como uma esfinge que observa o deserto sertanejo, fiquei muito tempo calado pensando quantos pores do sol essas escarpas já assistiram. Os pássaros sertanejos quebravam o silencio da caatinga; sabiás, concrizes, galos-de-campina, juritis, nambus e tetéus. Os trinados sertanejos são únicos, como o luar do Sertão de João Pernambuco, e isso me fez lembrar Gonçalves Dias; “as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá”.
Na virilidade poética de meus vinte e poucos anos, mudo diante daquele Golias imóvel que se erguia acima de mim, senti-me incrivelmente pequeno. Mas depois de horas absorvendo as imagens e energias magnéticas das escarpas da Borborema, como diz a canção Manhãs de Setembro: “fui eu que consegui ficar e ir embora”.