Vanderley de Brito

Historiador, arqueólogo, genealogista e atualmente é presidente do Instituto Histórico de Campina Grande (IHCG).

Minha Rainha da Borborema

Publicado em 14 de fevereiro de 2023

Olho do alto da janela a cidade de Campina Grande lá embaixo. Com ares de rainha e geometria rígida, a cidade hoje não possui mais as deformidades de seus tempos iniciais. Mesmo filho da cidade, sou um patrício tardio da terra, não acompanhei seu desenvolvimento e a Campina de hoje, com edifícios que se fundem e confundem, é a única referência que ilustra minhas recordações. Só aprendi a me identificar com a cidade depois que entrei no Instituto Histórico de Campina Grande, há dois anos, experiência que, de algum modo, me fez sentir estranhamente tentado a adorá-la. Até então Campina era só minha morada, meu pousio, meu ponto de fuga.

Irrequieta e ostentosa, a Campina Grande de hoje é irreconhecível para quem a viu em formação. Seus feitios antigos praticamente desapareceram, foram prescritos, imaterializados, suplantados pelo moderno.

Da janela, de alumínio e vidro do apartamento, me aparto da confusão de movimentos que se interpelam nas formas da cidade. Íntimo da cidade que posso ver em muitos quadrantes, do alto (Branco) Campina é uma maravilha oftálmica que me faz sentir seresteiro, lírico e venturoso. Como um anfiteatro natural, ela é abraçada por cordões de serras. A sul, a irregular cordilheira de Bodopitá, uma prova irrefutável da existência de Deus que escreve direito por linhas tortas. Às costas dessa, silhuetas de serras azuladas, irrestritas, leves, quase imateriais, vão aguando na distância até se fundirem com o infinito; e para o oriente, a cidade se limita na fachada da Serra de Massaranduba, entulhos sedimentares que rodeiam a cidade até se fechar ao ocidente nos altaneiros do Serrotão, alicerces do vale do Bodocongó. Enfim, a cidade se desdobra entre serras, intrauterina, e dessa vista prodigiosa me sinto rodeado de mim mesmo, enquanto o gaiar do vento me refrigera, o mesmo vento que corre entre os labirintos da cidade.

No meu campo de visão, pontos referenciais: À direita a Pedra de Santo Antônio ao longe, como uma verruga a culminar Bodopitá; à minha frente o viaduto Elpídio de Almeida, com seus tentáculos a erguer o asfalto; e a minha esquerda o fálico Edifício Roberto Pinto, gigante arranha-céu que me remete à lendária Torre de Babel. Esse é o quadrante de meu mirante, onde a cidade, em esforço civilizatório, é esteio de gente anônima que vive sob um mesmo cânon básico do convívio em sociedade.

Aprecio e venero minha cidade na onomatopeia da modernização, sem o pieguismo saudosista que tanto está em voga nos “intramuros universitatis”, onde prestigiados historiadores, com ares de grande probidade e academicismo, esbravejam a retórica conspirativa e negativista que apenas enxerga nódoas na cidade, responsabilizando à reforma urbanística do ex-prefeito Vergniaud Wanderley, ocorrida entre 1935 e 1945, pelo desmonte originário da cidade para dar lugar à francesa art déco, uma expressão definida como moderna, industrial e cosmopolita.

De certo modo, a ideia soa obtusa, retrógada. Um saudosismo boçal e sonolento, típico das liturgias acadêmicas, que nega a dialética para lamuriar a ausência de carcaças testemunhais de um tempo necessariamente ultrapassável, um tempo coagulado nas práticas dos herdeiros das velhas sesmarias, de casebres onde vivia uma população pobre e carente de tudo em uma economia rudimentar dominada pelo latifúndio. Uma realidade insalubre-provinciana que, felizmente, há muito tempo jaz no silêncio das tumbas do Monte Santo.

É realmente curioso que esses que se autoproclamam paladinos da memória da cidade, contraditoriamente, sejam os mesmos que advogam contra a natural reedição urbanista moderna, chorosos também pela preservação da rígida e fria art déco, a mesma Caixa de Pandora de seus discursos antivergniaudianos.

É, portanto, um discurso que ao invés de explicar, confunde. Tem lá suas empatias, mas deixa muito a desejar porque, transcendente às questões patrimonialistas, ao ciclo natural em que as cidades nascem, vivem e morrem, para dar lugar a novos nascimentos, novas vidas, novas mortes. A Rainha da Borborema de hoje, com seu prestígio, bem viver, grandeza, rosto de cimento, asfalto, vidros fumês, pressa, anúncios e tráfego, é, em última análise, o resultante de uma série de mudanças culturais, demográficas e históricas que resultaram num novo patrimônio, feito a imagem e semelhança da polis que representa na contemporaneidade.