Marcos Marinho
Jornalista, radialista, fundador do ‘Jornal da Paraíba’, ‘Gazeta do Sertão’ e ‘A Palavra’, exerceu a profissão em São Paulo e Brasília; Na Câmara Federal Chefiou o Gabinete de Raymundo Asfóra e em Campina Grande já exerceu o mandato de Vereador.
Eu, Delfim e o “furo” de Nonato Guedes
Publicado em 13 de agosto de 2024No dia 22 de setembro de 1982 eu me encontrei pela segunda vez com o então ‘czar’ da economia brasileira, Delfim Neto, em seu gabinete na Esplanada dos Ministérios.
A primeira foi em um restaurante na Asa Sul da Capital da República – acho que o especialíssimo Piantella – e somente nos cumprimentamos.
Ontem, aos 96 anos de idade, ele nos deixou. E posso atestar: fará muita falta ao Brasil!
Delfim era uma figura extraordinária: inteligente, sensível e durão, certamente esta última qualidade herdada dos militares a quem muito ajudou no difícil período da ditadura de 1964.
Sua vasta cultura, como analisa o confrade Nonato Guedes em coluna hoje publicada na mídia de João Pessoa, foi reconhecida por gregos e troianos em depoimentos sobre sua morte, bem como a sua contribuição em aspectos de políticas públicas sociais adotadas no Brasil.
“O problema é que ficou estigmatizado por ter sido um dos mais longevos ministros do regime militar, sempre pilotando áreas técnicas ou econômicas, e por ter legado situação de hiperinflação ao país, que ficou conhecida como “o milagre brasileiro”. Também foi bastante criticado quando defendeu o axioma de que “é preciso fazer o bolo crescer para só então distribuí-lo”, recorda-nos Nonato.
Naquele setembro super seco de Brasília, quando recebeu uma pequena caravana de jornalistas paraibanos, eu entre os tais, encontramos um Delfim sorridente, cordato e bastante confiante no futuro do Brasil.
A pequena troupe paraibana, além deste campinense que vos escreve, contava além de Nonato com Antônio Genésio de Souza, Pedro Moreira, Alexandre Torres, Severino (Biu) Ramos, Fernando Melo, Tarcísio Cartaxo, Luiz Barbosa de Aguiar e Humberto de Campos. Na época, Delfim era ministro-chefe da Secretaria de Planejamento da Presidência da República, em pleno governo Figueiredo, e uma plaquete com suas afirmações chegou a ser editada e distribuída pelo ministério.
“Como Delfim estava recebendo jornalistas de diferentes Estados, especulou-se que ele iria ser candidato à Presidência da República no ocaso dos militares, ainda que por via indireta. Mas isto não se concretizou, e na redemocratização Delfim acabou se elegendo, pelo voto, deputado federal por São Paulo. Foi, ainda, ministro da Agricultura e embaixador do Brasil na França”, rememora Nonato.
Nossa ida a Brasília atendeu convite do próprio Delfim, que a cada dia daquele mês concedia entrevistas a jornalistas de cada um dos Estados da nossa Federação, aplainando o cabedal de críticas que se faziam naquela época, de Norte a Sul, ao desgastado regime dos quartéis.
Chegamos em Brasília no final da tarde do dia 21, em vôo da velha VASP com passagens pagas pelo Governo, que ainda nos mimoseou com hotel cinco estrelas, alimentação gourmet e uma série de outras gentilezas na Corte da República.
Nos reunimos no hotel à noite para cuidar da pauta da entrevista, que seria às nove da manhã do dia seguinte, com tempo previamente definido de 60 minutos.
Logo após o café da manhã, no dia 22, as viaturas do ministério chegaram para nos transportar ao gabinete de Delfim, que nos recebeu com pontualidade britânica. Às dez horas em ponto o assessor de imprensa avisou ao ministro que o tempo esgotara e que a “imprensa internacional” já o esperava para uma outra entrevista, na sala ao lado. Em pé, Delfim agradeceu a nossa presença e, feito meteoro, ultrapassou a porta para o encontro com a turma do exterior.
Hoje, Nonato lembra de uma confissão feita por Delfim naquela manhã:
– “Até concordo em que o esporte nacional é falar do Delfim Netto. O meu esporte nacional, também, é ficar me defendendo. De vez em quando dou pequenas flechadas, mas muito poucas. O que acontece é que as pessoas precisam fixar os seus problemas em alguma coisa, de preferência no ser vivo. Quanto mais primitiva é a pessoa, mais necessidade ela tem de ter um animal ou ser vivo, no qual descarrega tudo aquilo que acha desagradável”, desabafou o gorducho economista.
Nonato trabalhava no “Correio da Paraíba” e foi quem quebrou o “pacto” que firmamos de somente divulgar o teor da entrevista quando retornássemos, para que ninguém “furasse” ninguém e assim pudéssemos curtir o resto do dia em Brasília aproveitando o chopp e o uísque que Delfim pagaria a débito dos cofres do Palácio do Planalto.
A manchete do jornal de Roberto Cavalcanti estampou a traição de Nonato, e ele de cara lisa e sorriso maroto nem ligou para as nossas duras e óbvias reclamações…
Da noticia escrita por Nonato, ele hoje em seu artigo recorda o que Delfim afirmara na época: que, apesar da seca, o Nordeste não tinha deixado de crescer. Admitiu que havia discriminação, sim, por parte do governo federal, “mas a favor do Nordeste”, citando programas que estavam em fase de execução.
Delfim não acreditava em prognósticos sobre recessão, ponderando que o que tinha ocorrido fora a redução do nível de atividade que era necessária para ajustar a balança comercial, além da influência de fatores externos, como a guerra das Malvinas, na Argentina.
Jurou Delfim que o Brasil continuava transferindo renda para o Nordeste, e que era o único país onde se continuava fazendo uma transferência importante de renda das regiões mais desenvolvidas para as regiões menos desenvolvidas. E nos disse sem nenhum tipo de constrangimento que se transferia, por ano, entre a Região Sul e o Nordeste ou Norte, mais recursos do que o mundo subdesenvolvido recebia do mundo desenvolvido como um todo. Quis com aquilo dar uma ideia do esforço que estava sendo feito, e justificou que era a explicação do porque durante três anos, “com uma crise enorme, com uma recessão no Sul, a economia do Nordeste não sofrera tanto”. Ele vendeu bem o seu peixe e não assumiu que houvesse incompreensão das lideranças nordestinas; apenas achava que era preciso “considerar os fatos”.
Pressionado pela conjuntura política, que registrava as primeiras eleições diretas a governadores estaduais desde a deflagração do golpe de 64, Delfim Neto descartava as pressões para um congelamento de preços até as eleições, pelo menos. Disse: “A obrigação do governo é continuar governando; a obrigação do governo não é enganar. Ou você acha que nós aumentamos o preço da gasolina porque é do meu desejo aumentar o preço da gasolina?”. E, na sequência: “Há alguns imbecis que imaginam que isso é -produto da vontade do Senhor Delfim Netto”.
Conforme ele, o governo não reajustava preços por uma vontade própria, mas, sim, em decorrência dos fatores que influenciavam o desempenho da economia de mercado no Brasil.
Em 1982, Delfim Neto assegurava que a prioridade número um do governo era a agricultura, acompanhando oscilações que, na sua avaliação, favoreciam o Brasil. Enquanto isso, no social – ressaltava – a preocupação do governo do presidente Figueiredo era ir alterando o orçamento na direção de projetos que atendessem a esse aspecto. “O Finsocial, agora, é um exemplo típico disto, e não é pouca coisa”, alardeava.
Nonato ainda lembra que um dos nossos questionou Delfim Netto: “Ministro, as eleições de novembro são importantes para o Brasil, todos nós sabemos disso. Gostaria de saber: se a oposição vencer, o governo tem alguma proposta para mudar sua posição?”. A oposição acabou vencendo as eleições nos grandes Estados, que constituíam o chamado PIB nacional, conforme denominação da mídia sulista. Na Paraíba, ganhou o então deputado Wilson Braga, candidato do PDS, partido do governo, contra Antônio Mariz, que era do PMDB, obtendo uma vitória de 151 mil votos.
Delfim Netto assim respondeu à pergunta sobre a influência das eleições: “Deixa eu lhe contar: quando o presidente iniciou a abertura, é claro que ele se preparou para todas as consequências. Haja o que houver, o Brasil vai continuar, e vai continuar funcionando. Só que a Oposição não vai vencer. Em particular na Paraíba, a oposição não tem jeito”. Delfim Netto, como se constata, cravou ali um prognóstico certeiro, que foi confirmado nas urnas.
Eu o questionei sobre um drama local de Campina Grande: a possibilidade da Wallig Nordeste, com incentivos federais, voltar a funcionar. Frio ao extremo, foi sincero além da conta: “para fabricar fogões, nunca mais!”.
E me explicou: “como é que uma fábrica que vai buscar matéria prima em Volta Redonda/RJ (referia-se à Siderúrgica daquela cidade) pode fabricar fogões a preços competitivos?”.
E ponto final.
Cheguei no hotel, chamei Humberto de Campos, Cartaxo, Biu Ramos e Aguiar e trocamos as mordomias de Delfim por um resto de dia espetacular, extremamente campinense, na pérgola da piscina da casa do mano Ismael Marinho no Lago Sul assando picanha argentina até abusar e tomando cachaça da melhor qualidade que ele nos ofereceu.
E da traição de Nonato, com seu indesculpável “furo”, até que nos esquecemos…