Valberto José

Jornalista, habilitado pelo curso de Comunicação Social da Universidade Regional do Nordeste (URNE), hoje UEPB. Colunista esportivo da Gazeta do Sertão e d’A Palavra, passou pelo Diário da Borborema e Jornal da Paraíba; foi comerciante do setor de carnes, fazendo uma pausa de 18 anos no jornalismo.

De carona na Viação Solha

Publicado em 10 de janeiro de 2024

Nascer no interior paulista, vir trabalhar no Sertão da Paraíba muito jovem, com chances de volta ou transferência, e aqui ficar, já me é motivo suficiente de não deixar de ler a autobiografia de Solha. Meu interesse dobra quando o protagonista é multitalentos e, mesmo com suas várias facetas, 60 anos depois aqui permanece, cada vez mais encantado com o nosso torrão. E, aos 82 anos, produzindo.

Nada havia lido ou visto de W. J. Solha até aderir ao Facebook em meados do ano passado. No entanto, a leitura de colunas e reportagens sobre ele e sua intensa atuação no meio artístico e cultural paraibano, como ator, romancista, dramaturgo, poeta e artista plástico, já me fizeram dele um admirador.

Esse paulista de Sorocaba acaba de lançar Autob/i/ografia de Solha e me envia um exemplar com dedicatória e tudo. “Vou me deliciar, Solha, com suas folhas”, disse-lhe, agradecendo, via Messenger. Estou mais do que me deliciando, estou voltando à minha adolescência vivida no Sertão e, num instante, voltei à minha infância em Campina Grande. Mas fiquemos na vivência sertaneja.

Fomos morar em Malta, naquele dezembro de 1971, lá chegando numa sexta-feira à noite, onde ficamos por três meses. No domingo, papai ordenou que eu fosse vender as especiarias que embalávamos (eu e meus irmãos) nas poucas mercearias existentes. Na leitura de Solha, me vejo, no sábado seguinte, sem que eu conhecesse nada, fazendo as praças de Condado, do então distrito de São Bentinho e a de Pombal.

Passei quatro ou cinco anos percorrendo esse itinerário, um sábado sim, outro não. A partir do terceiro mês de Sertão, partindo de Patos, para onde nos mudamos no Dia de São José daquele ano, incluindo também a praça maltense.

Na narrativa de Solha, volto a percorrer toda Pombal, uma caixa cheia de temperos embalados em pedaços de cartolina e de comprimidos, carregando-a ora na cabeça, ora apoiada nos quadris, sustentada por um dos braços, o corpo levemente pendendo para o outro lado.

Depois de visitar todas as quitandas da cidade, volto à rua da feira já quase meio-dia, repleta de gente e um calor insuportável, quando resolvo, antes de almoçar num ponto barato, chupar um picolé. “Quer de quê?” Me dê o de coalhada, respondi depois que o vendedor citou o nome de uns cincos sabores. Aguentei degustar apenas a metade da iguaria, jogando a outra fora, e passei décadas sem tomar coalhada.

Ainda à rua da feira de Pombal volto, na leitura de Solha, e me encontro com os desejos aflorando, sonhando ser gente grande. Depois do almoço, o casal dono do boteco deitou-se numa rede e começou a trocar carícias, ignorando a presença do menino de 13 anos que eu era.

Também me vi lendo, num muro, acho que de uma escola, a frase machista “Não dou valor a candidato que mija de coca (cócoras)”. Tudo porque uma mulher – Dalva Carneiro Arnaud – era uma das opções de candidato ao cargo de prefeito de Pombal, em 1972. Pena que apaguei da memória os nomes dos bodegueiros da cidade que atendera, mas ainda sinto o cheiro de oiticica prensada da Brasil Oiticica.

No prefácio do livro, o editor logo nos alerta que não vamos “encontrar uma autobiografia com começo, meio e fim”. E isso é bom para mim, pois ainda estou no começo da viagem de volta ao sertão de minha adolescência (estou próximo da centésima página), me dá a certeza de que retornarei a Pombal outras vezes até terminar a leitura prazerosa dessas quase 350 páginas. De carona na Viação Solha, lembrando os envelhecidos ônibus das empresas Andorinha e Gaivota, agora sem o peso da caixa que carregava as mercadorias vendidas na cidade.