
Valberto José
Jornalista, habilitado pelo curso de Comunicação Social da Universidade Regional do Nordeste (URNE), hoje UEPB. Colunista esportivo da Gazeta do Sertão e d’A Palavra, passou pelo Diário da Borborema e Jornal da Paraíba; foi comerciante do setor de carnes, fazendo uma pausa de 18 anos no jornalismo.
Cenas urbanas de uma cidade centenária (III)
Publicado em 17 de outubro de 2023Poucas residências tinham aparelho de TV e o rádio reinava absoluto em audiência na Campina Grande centenária da década de 1960. A Patrulha da Cidade era um dos campeões. A casa de minha avó paterna reunia filhos e netos, que moravam em três casas vizinhando a sua, na ampla sala em redor do rádio que centralizava o ambiente, na audição do programa policial ainda hoje no ar.
Em certa época do ano a sirene do Corpo de Bombeiros insistia em quebrar o silêncio reinante da Rua Almirante Barroso, levantando poeira a partir da esquina com a Rio de Janeiro, no Quarenta, onde o conforto trepidante do calçamento vindo do centro acabava. A corporação atendia a chamados rotineiros para controlar incêndios nas fazendas Quixaba e Trapiá, motivando comentários de suspeição de moradores da hoje avenida.
A intolerância daqueles anos de chumbo também contaminara a Polícia Militar, que praticava seus excessos até no clarão do dia. Voltávamos a pé, eu e meu pai, juntamente com outros homens, da sessão noturna do Cine São José, formando uma caravana de quase uma dúzia de pessoas que se dirigia às suas casas, satisfeitas com o que vira na tela.
Única criança do grupo, posicionava-me sempre atrás, ora pela calçada, ora pelo calçamento. Permaneci na lateral da rua ao passar pelo quartel do II BPM, inocentemente tentando seguir por toda sua extensão frontal. “Fora da calçada”, gritou o sentinela, despertando-me de minha distração infantil. Recordo que tremi na base.
Naquele tempo a figura do comissário de bairro era a principal autoridade suburbana, geralmente um sargento, assim como havia o comissário de menor; este, nunca vi, mas, pelo que contavam, nos causava sensação de medo. Em alguns subúrbios, o comissário fazia de sua casa o Posto Policial, reservando um quartinho atrás na serventia de cárcere. Como chefe do posto, o comissário tinha sua equipe de auxiliares, formada por cabos e soldados.
Naquele final de tarde, na ausência do titular, o cabo assumiu a chefia; na frente do “PP”, uma pequena aglomeração de pessoas tomava a fresca da hora quando passou um bêbado daquele jeito “cai aqui, cai acolá”. Ao vê-lo de longe, o cabo levantou-se, pôs as mãos entrelaçadas atrás e ficou andando, indo e voltando, indo e voltando. Quando o bebum o emparelhou, deixou que ele avançasse um pouco, levantou a perna direita, apoiando-se na esquerda, e arrematou, na impetuosidade do gesto, o coturno nas costas do homem, que caiu de peito e as mãos abertas como que querendo amenizar o impacto. Menos mal que a pavimentação ainda não chegara naquela rua.
A imaginação do menino que eu fui ainda habita na minha memória como teria sido a cena que vitimou um PM morador da Rua Salustiano Bezerra Cabral, na Maciel Pinheiro. A via é aquela que se inicia na esquina da Escola Apolônia Amorim, na Almirante Barroso, e que na época muitos chamavam de “Peido Arrochado”, cognome esse que eu nunca soube o motivo.
Velório é sempre encontro de pessoas que se conhecem e poucos se veem, daí prevalecer as conversas paralelas. No velório do policial, em sua casa simples, os adultos contavam como fora o assalto que o vitimou com alguma riqueza de detalhes, que muito impressionou o menino que eu era. O de que um taxista escapara da bala ao se abaixar dentro de seu carro e ela transpassar o vidro das duas portas laterais, não o atingir e acertar o soldado.
No final daquela manhã os moradores da Almirante Barroso ganharam a rua, curiosos, atraídos pelo barulho de um ônibus da linha, que nela trafegava como se fosse nas estradas asfaltadas de hoje, cobrindo tudo e todos de poeira. Ninguém entendia o que teria acontecido. Na Patrulha da Cidade, da Rádio Borborema, programa apresentado por Rosil Cavalcante e Humberto de Campos, a notícia esclarecedora que mexeu com os moradores do bairro: o motorista do coletivo assassinara, minutos antes, um jovem morador da Rua Três Irmãs.