Valberto José

Jornalista, habilitado pelo curso de Comunicação Social da Universidade Regional do Nordeste (URNE), hoje UEPB. Colunista esportivo da Gazeta do Sertão e d’A Palavra, passou pelo Diário da Borborema e Jornal da Paraíba; foi comerciante do setor de carnes, fazendo uma pausa de 18 anos no jornalismo.

Cenas de uma devoção maternal (III)

Publicado em 21 de novembro de 2024

A “fé move montanhas”, e não há distância que não alcance, acrescento. Naqueles anos iniciais da década de 1960, o acesso à zona rural do município de Campina Grande era predominantemente feito pela tração animal ou a pé. Não havia linhas de ônibus e carros, só os de carona dos fazendeiros residentes na cidade ou na sua propriedade, e de serviços, como busca de leite nas fazendas. Isso não impedia que habitantes de algumas dessas localidades exercessem sua prática de fé.

Dona Cleonice nasceu no Estreito, uma das localidades às margens da hoje PB 138, que nos leva ao município de Boa Vista, mas logo a família foi morar no sítio Cajazeiras, no lado direito de quem vai da Rainha da Borborema, logo após o Lucas e um pouco afastado da rodovia. Na escassez de transportes, moradores saiam do Estreito às 3h da madrugada e vinham participar da primeira novena do dia (5h30) em Bodocongó. Claro, passava pela casa de meus avós, e minha mãe se juntava à comitiva.

Morando na cidade e grávida de um dos filhos, resolveu passar uns dias na casa paterna, mantendo a novena na agenda. Na madrugada da terça, juntou-se aos romeiros, enfrentou a caminhada e participou da celebração; no retorno, fez o mesmo percurso, parando em sítio de conhecidos, que estavam colhendo batatinhas e lhe ofereceram uma porção. Como não havia em que colocar a oferta, pediu permissão, foi ao quarto da casa, tirou a saia de baixo (anágua), improvisou uma rodilha cheia de batatinhas e a colocou na cabeça, com que surpreendeu minha avó na chegada.

Naquela primavera de 1962, minha mãe foi cumprir mais uma promessa da que fizera de quando nascer mais um filho seu primeiro passeio ser na Igreja de Bodocongó. Em vez da romaria costumeira pelo Corredor de dona Mequinha, optou por ir de ônibus. O sacrifício seria menor, principalmente da criança, que nascera no mês de agosto. Pegaria quatro lotações, bairro/centro e centro/Bodocongó, ida e volta.

Após a novena, entrou na longa fila do coletivo, o menino nos braços e a sacola incômoda com itens do bebê aumentando o peso. Nisso, uma mulher, piedosa, lhe oferece ajuda e pede a sacola. Minutos depois, o ônibus chega e o motorista ordena que ela avançasse a fila e entrasse, enquanto tinha cadeira vazia. O carro parte e logo se lembra da mochila que ficara com a desconhecida.

Na agonia momentânea, surge outra ajuda. Maria Campos, vizinha querida de Dona Cleonice, se dispôs a levar o menino, logo pedindo parada, para que ela descesse e fosse resgatar a sacola. Minha mãe desceu do ônibus, voltou em passos ligeiros, não mais encontrou a mulher, mas conseguiu reaver a bolsa na lojinha da igreja.

Diante dos imprevistos, Dona Cleonice criou mais preocupações. Imaginou se tivesse entregado o menino a uma desconhecida. Nem quando desceu do ônibus, chegando em casa, teve um momento de alívio. Rita, a irmã caçula e que estava em nossa casa, aprontou. “Cadê o menino?”, indagou. Reagiu colocando as mãos na cabeça e, antes que perdesse o juízo, minha tia lhe acalmou. “Deixa de ser besta que o menino já está deitado e dormindo”, aliviou.

São cenas marcantes na caminhada de minha mãe na sua devoção a Nossa Senhora. Sempre que conversa comigo recorda esses momentos, agora que estou levando-a novamente às novenas, após uma pausa desmotivadora imposta pela pandemia.