Cachaça e Saúde no Brasil Colonial: críticas, controvérsias e legados do século XVIII
Publicado em 29 de julho de 2024Luís Gomes Ferreira, um cirurgião português com longa permanência e atuação no Brasil, nas primeiras décadas do século XVIII, em seu livro de tratados médicos chamado Erário Mineral (1735), faz um alerta sobre a qualidade das aguardentes no país e diz o seguinte: “segundo as muitas observações que tenho feito e a experiência me tem mostrado em todo o tempo que tenho assistido nestas Minas [Gerais], não há coisa alguma nelas que seja mais prejudicial à saúde […] como é a dita aguardente ou, por outro nome, e bem próprio, cachaça, pois, ordinariamente, quando queremos afirmar que uma coisa não presta para nada, dizemos que é uma ‘cachaça’” – palavra cuja etimologia e significados anteriores no próprio Brasil faziam referência à ideia de resíduo sem muito proveito. Declaração categórica, duramente crítica, que, talvez, dialogue com as expectativas do leitor a respeito de diferenças feitas entre produtos brasileiros e produtos estrangeiros ao longo da nossa história. Mas será que a opinião de Gomes Ferreira era partilhada por muitos de seus contemporâneos?
Os diferentes lugares ocupados por aguardentes no passado – o de bebidas derivativas, o de alimentos e, ainda, o de medicamentos – garantiram que elas estivessem sempre no horizonte de muitos agentes de saúde que passaram pelo Brasil e que sobre ele escreveram, quase sempre com a intenção de delinear um panorama das condições ambientais e de vitalidade do povo, o que os levava também à prescrição de tratamentos para situações de enfermidade. Claro que havia uma distinção valorativa entre o que chamavam de “aguardentes da terra” e “aguardentes do Reino”, as vindas de Portugal. Mas, nas circunstâncias difíceis de abastecimento do Brasil, especialmente em suas porções mais interioranas, como era o caso de Minas, os produtos “desejáveis” custavam a chegar, e, quando chegavam, eram caríssimos. Assim, diante de problemas de saúde e de outras necessidades e vontades cotidianas, as opções “da terra” foram ganhando cada vez mais espaço, tanto na rotina das pessoas quanto nos repertórios desses mesmos agentes de saúde.
Em outro ponto do seu livro, Gomes Ferreira alerta o leitor para que, ao tratar de mordidas de cobras venenosas, “de nenhum modo” utilize “aguardente da terra sendo nas Minas, porque [ela] tem certas qualidades muito contrárias à nossa natureza, e por isso não convém usar dela em doença, nem em saúde”. Mas o próprio cirurgião apresenta um contraponto: “não digo, porém, o mesmo da aguardente da Bahia, porque aquela é feita de cana-de-açúcar espremida e esta”, a mineira, a que efetivamente chamavam de cachaça, era feita “de mel já depurado”.
Não se tratava, portanto, de Ferreira ser meramente contrário a aguardentes brasileiras, mas sim às variedades comumente produzidas em Minas, a partir dos resíduos da produção de açúcar. Como explica o médico luso Antônio Ribeiro Sanches, em seu Tratado da conservação da saúde dos povos, de 1756, “é notório que a aguardente destilada do sumo da cana-de-açúcar é saudável”, pois sua elaboração seria livre dos materiais “que deitam na caldeira para purificar e coalhar o açúcar”, como cinzas e óleo de mamona, contaminantes do substrato remanescente. De modo que, mesmo havendo aqueles, médicos e cirurgiões ou não, que de modo algum legitimavam qualquer aguardente brasílica, a percepção geral de tudo que se produzia no Brasil não era inflexivelmente negativa. E muitos relatos de gente comum apontam para valorizações positivas dessas bebidas, que tinham um “prestígio singular”, nas palavras de Sérgio Buarque de Holanda. Tanto no quesito alimentício quanto no terapêutico, sendo elementos importantes do cotidiano de gentes livres e escravizadas.
Fiquemos em apenas um exemplo, o de um português anônimo, vivendo nas Gerais na primeira metade do século XVIII: ele vai dizer que “o maior fruto que nestas Minas se tira da cana é […] fazer-se aguardente dela, a que vulgarmente chamam cachaça”, da qual havia alta demanda, “porque não é só a que se gasta em várias enfermidades – como dores, inflamações, feridas e para os olhos e a surdez, e, em conclusão, é muito medicinal –, mas a que mais se gasta é pelas tabernas […]”. Aliás, não faziam somente aguardentes dos subprodutos da cana, segundo ele, mas também de beijus de mandioca, e de laranja.
Entendemos, portanto, que a natureza daquilo que se bebia importava, sim. Mas o aspecto qualitativo ia além de sua origem. Produto brasileiro não significava, automaticamente, aos olhos de todo e qualquer indivíduo, algo nocivo ou de baixa qualidade. E, no que dizia respeito às aguardentes e à saúde, a palavra da vez era moderação, como explica novamente Ribeiro Sanches: “bem sei que o uso da aguardente poderá ser tão pernicioso, tomada em demasia, como poderá ser utilíssima para preservar-se de muitos males, bebida com moderação. […] É certo que a aguardente por si só considerada é o mais soberano corretivo e preservativo […] inventado pelos homens”.
Nem sempre, e nem de forma tão extrema, as aguardentes e outros produtos típicos do nosso país foram relegados por “reinóis” e outros europeus a lugares inferiores pura e simplesmente por serem nacionais. Quanto melhor conhecermos essa e outras histórias, melhor poderemos apreciar e trabalhar em prol da crescente valorização do que é nosso no nosso tempo. Saúde!
Fonte: Mapa da Cachaça (Por Gabriel Ferreira Gurian)