A mentalidade de inovação serve pra gente perpetuar o nosso negócio, diz Cristina Leonhardt
Publicado em 8 de maio de 2024Engenheira de alimentos com 24 anos de experiência explica os principais caminhos que a indústria alimentícia brasileira precisa seguir para atender a nova demanda de consumidores veganos e vegetarianos
As últimas pesquisas feitas sobre o índice de pessoas que se autodeclaram veganas ou vegetarianas mostraram que o grupo cresceu exponencialmente nos últimos anos.
Segundo o Instituto de Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica (IPEC), em 2021, pelo menos 20% dos brasileiros disseram escolher uma opção vegana quando frequentam algum estabelecimento comercial.
Outros 37% dos entrevistados admitiram que adaptaram a própria alimentação para não consumir carne pelo menos uma vez na semana.
Para entender mais sobre essa nova demanda do mercado, a Agência de Notícias da Indústria conversou com a engenheira de alimentos Cristina Leonhardt.
Natural de Lajeado, no Rio Grande do Sul, Leonhardt atua há 24 anos na indústria alimentícia. Trabalhou em pesquisa e desenvolvimento em empresas nacionais e multinacionais durante 15 anos e atualmente auxilia empreendedores a conduzir projetos inovadores, entendendo o público consumidor.
Confira a entrevista!
AGÊNCIA DE NOTÍCIAS DA INDÚSTRIA – Considerando essa crescente tendência dos brasileiros em se dispor a não consumir proteína animal ou consumir menos, como a indústria alimentícia pode investir em inovação para contemplar esse público?
CRISTINA LEONHARDT – A gente tem que se dar conta de que 2021 a gente estava ainda sob um efeito bastante importante, da pandemia, que fez muita gente olhar para a questão da carne e da sustentabilidade. E ainda estávamos vivendo o auge do que nós podemos dizer que é uma segunda onda dos produtos vegetarianos no Brasil.
Temos uma primeira onda ali nos anos 70 e 80 e uma primeira onda tímida até, onde a gente tem o surgimento de diversas empresas que até hoje estão no mercado, como a Goshen, que surgiu nos anos 90, por ali. A gente até tem alguns lançamentos de frigoríficos, como Sadia e Perdigão, que trazem produtos ali no início dos anos 2000.
Produtos vegetarianos, como nuggets de brócolis, salsichas vegetarianas, mas que não tiveram muito sucesso, até porque as tecnologias de ingredientes para desenvolver esses produtos vegetarianos ainda estavam em modelos anteriores, eram tecnologias mais iniciais.
De 2019 em diante, a gente vive uma primavera dos produtos veganos e vegetarianos e a gente vê ali o surgimento de grandes players, claramente fazendo o futuro incrível, como a JBS. A gente vê o surgimento e um interesse bastante grande a partir do final de 2019 a 2021. A pandemia também aumenta esse interesse dos brasileiros e brasileiras por produtos veganos e vegetarianos, especialmente alternativas para carnes.
Claro que a gente também tem o surgimento de leites veganos e vegetarianos. A gente tem o surgimento de alternativas ao ovo, mas a alternativa para carne, especificamente, é o que nesse momento tem o maior boom de mercado.
Então, esse dado de 2021 [do IPEC] está localizado nesse período e nesse contexto. Se a gente for refazer essa pesquisa agora, eu creio que nós teríamos dados um pouco diferentes. Nós já tivemos aquele momento do hype, já passamos por ele, muita gente provou. E movimentou a indústria fortemente nesse período até 2022. Mas, a partir de 2022 a gente vê uma certa acomodação nesse mercado depois desse frisson que tinha acontecido nos anos anteriores.
O que acontece nessa acomodação? Primeiramente, existe um movimento do consumidor de provar certas coisas, testar novas inovações, de verificar se elas fazem sentido na dieta, no dia a dia e na rotina. Para algumas pessoas fez muito sentido e as pessoas continuaram consumindo, mas para outras pessoas não fez sentido.
Então, acho que é interessante a gente lembrar que quando a gente tem uma moda muito forte – como foi o caso dessas carnes vegetarianas e dessas alternativas à carne – muita gente que não é vegetariano e que não se identifica como vegano também vai provar, meramente por curiosidade. E esse movimento de provar, num país de 220 milhões de habitantes, certamente gera mercado e negócios bem interessantes para muitas empresas.
Entretanto, nem sempre esses movimentos se convertem em continuidade de consumo, e é aí que ocorre a acomodação. Isso é normal e típico de qualquer inovação na área de alimentos.
Mesmo que eu seja uma empresa de produtos de origem animal, que usa carne, laticínios, mel ou ovos, eu acho que seria irresponsável para qualquer liderança estratégica de inovação de qualquer empresa desse segmento não olhar para as alternativas que estão se desenvolvendo no seu mercado.
Então, o que eu faria na posição de uma liderança estratégica de uma empresa de produtos de origem animal? Eu teria frentes de inovação para olhar para o mercado que vai ser a terceira onda dessas alternativas aos produtos de origem animal. Essa segunda onda é muito feita por proteínas alternativas, por exemplo a proteína da soja, da amêndoa, da ervilha, do grão de bico – substituindo a proteína da carne.
Além disso, já está em desenvolvimento, inclusive no Brasil, a gente já tem startups fazendo isso, a próxima onda possivelmente será ali ao redor da fermentação. Especialmente, a fermentação de precisão, que é capaz de nos entregar proteínas específicas, proteínas e outros compostos, né? Proteínas, carboidratos, lipídios específicos para a construção de produtos, que no final das contas, vão ter exatamente o mesmo teor proteico que um produto com carne teria.
Estamos falando também de carnes cultivadas, leite cultivados e todos esses novos alimentos que estão sendo obtidos através da fermentação e algumas técnicas posteriores aí para a formação dos tecidos.
Uma empresa responsável, que quer se perpetuar no mercado, mesmo que sua base seja hoje centrada em alimentos de origem animal deveria estar olhando para o futuro para pensar: ‘de que outras formas eu poderia entregar para o meu mercado consumidor a mesma proteína que eles estão consumindo hoje, porém, sem ocorrer o abate, ou sem a ordenha, ou sem o aprisionamento das galinhas?’.
Esse olhar, que talvez seja um olhar até um pouco doloroso para algumas pessoas porque questiona o próprio modelo de negócio, é necessário para inovação. Eu preciso entender qual é aquela tecnologia que, no futuro, pode vir justamente a desbancar o meu negócio do lugar, me destronar do meu mercado e quem sabe, seja eu mesma a empresa ou a pessoa capaz de fazer essa autofagia.
Não é muito fácil olhar para isso, porque isso pressupõe que a gente se desapegue de valores e crenças que são muito arraigadas no nosso modelo de negócio atual, mas é para isso que a inovação tecnológica tem que estar aí presente e a mentalidade de inovação também, ela serve para gente perpetuar o nosso negócio.
A inovação serve para a gente olhar para lugares onde o modelo de negócio atual, a rotina e a operação do nosso negócio atual não são capazes de olhar. A inovação é justamente para olhar para outros campos.
Para empresas que não são de produtos de origem animal, eu diria que o mais promissor é a gente olhar não para o que já foi feito, porque por exemplo, hambúrgueres vegetais já existem, leites vegetais já existem, alternativas ao ovo, mas olhar para aquilo que ainda não foi resolvido. O que está no mercado que ainda não foi resolvido?
A gente tem algumas questões que não foram resolvidas ainda, por exemplo todos os aspectos sensoriais desses produtos que substituem os produtos de origem animal, mas com ressalvas.
A gente tem texturas, sabores e cores que não são tão adequados, a gente tem questões, por exemplo, em relação ao queijo que foram resolvidas parcialmente, mas a gente quer ter aquele queijo vegano ou aquele análogo ao queijo vegano que faça ponto de fio, que tenha um aspecto de derretimento similar aos queijos de origem láctea. E uma outra questão é o preço.
Tem um exemplo muito interessante que é a Tensei, um frigorífico vegano da Serra Gaúcha, em Farroupilha, que olhou para esse aspecto. ‘Eu quero, entre os meus produtos veganos, ter uma opção acessível para quem é vegano ou vegetariano e que tá lá na classe C ou D, né’.
A gente sabe que as opções de produtos veganos e vegetarianos, hoje, são bastante caras no mercado e não são acessíveis para a população de menor renda. A Tensei falou: ‘eu vou conseguir fazer, de alguma forma, um hambúrguer que chegue lá no ponto de venda a R$ 2,50, a unidade’. Eles usaram a criatividade e a estratégia para chegar num produto que é acessível para uma pessoa com menos recursos poder também seguir uma dieta vegetariana ou vegana, caso interesse.
Eles fizeram isso de uma forma muito interessante, porque além do produto ser barato, ele é um produto pouco processado, que faz reaproveitamento de vegetais que seriam descartados, porque estariam fora do padrão de venda, como por exemplo feijões quebrados e coisas assim.
Então, ele tem aspecto que não é só o preço, mas também a sustentabilidade que é um aspecto de valor, de uma certa forma simbólico, que se conecta aos valores das pessoas que são vegetarianas e veganas também.
Esse é um exemplo muito interessante, porque a gente percebe que o valor gerado por uma inovação, não está apenas centrado naquilo que é o produto, mas principalmente deveria estar centrado naquilo que é o processo para obtenção daquele produto.
Qual a história que minhas matérias-primas contam? Qual é a história do uso de recursos da minha empresa? Aí tem um poço de possibilidades de inovação bastante grande e que muitas empresas às vezes se esquecem de olhar.
Eles, muitas vezes poderiam contar uma história muito bonita, uma história muito verdadeira, sobre como esses produtos foram obtidos e que se conecta muito aos valores e aos propósitos das pessoas as quais eles querem servir.
AGÊNCIA DE NOTÍCIAS DA INDÚSTRIA – Gostarímos que você falasse sobre a importância da tecnologia nessa área.
CRISTINA LEONHARDT – Então, a primeira coisa que a gente pode pensar, de uma forma um pouco mais genérica, é que qualquer tecnologia serve para gente expandir as nossas capacidades como seres humanos e para nos ajudar a fazer mais, com o mesmo tempo que nós temos. Então, quanto maior o nível tecnológico ao qual eu me exponho e quanto mais eu faço uso da tecnologia mais avançada, mais produtiva eu sou!
A pouca produtividade do trabalhador brasileiro, em relação aos índices globais, não tem a ver com o trabalhador brasileiro trabalhar pouco ou com o trabalhador brasileiro ser preguiçoso de alguma forma, pelo contrário, nós temos umas das cargas de trabalho mais altas do mundo e qualquer pessoa que já saiu do Brasil para ir trabalhar em outros países sabe com o brasileiro é muito bem-visto, porque ele é muito trabalhador e muito atencioso em seu trabalho.
Não tem a ver com o povo brasileiro em si, né, essa baixa produtividade tem a ver com a baixa capacidade tecnológica que a gente tem, de modo geral na nossa indústria.
E aí, falando especificamente da indústria de alimentos, tem muita gente que começa a empreender de forma manual, fazendo bolo no fogão da própria casa, fazendo uma maionese na própria cozinha, fazendo geleias, nos tachos, em uma garagem.
É uma área cuja barreira tecnológica inicial, pode ser bem pequena, então ela atrai muitos empreendedores.
Infelizmente, muitas vezes esses empreendedores demoram bastante tempo em perceber o quanto seria importante ter mecanizado, ou trazido a tecnologia para diversos aspectos, não só da produção de alimentos, mas também para emissão de notas fiscais, processos de vendas e processos de compras.
Enfim, então aqui eu estou falando de tecnologia abrangente, não só de tecnologia de informação, mas também das tecnologias da produção de alimentos.
A tecnologia, é um dos fatores mais importantes de competitividade junto com a estratégia das empresas e na indústria de alimentos, que tipicamente é um mercado de baixas margens.
Isso deveria ser uma dor discutida lá nas reuniões de alta gestão. ‘Como nós podemos trazer mais tecnologia para o nosso processo?’ Eu vejo que muitas vezes isso não é discutido, a gente discute muito mais sobre como a gente vende mais, como a gente comunica melhor os nossos produtos, como a gente compra mais barato. Nem sempre se discute como a gente moderniza o nosso parque industrial.
Daí entramos em empresas como eu entro e vemos parques bastante obsoletos, mesmo em empresas grandes, que teoricamente teriam condições de estar modernizando esses parques. Não estou dizendo que é fácil. Tudo é muito caro e infelizmente o desenvolvimento tecnológico no Brasil, dos próprios equipamentos, por exemplo, de produção de alimentos, ainda é muito incipiente.
Nós ainda temos fábricas de equipamentos, mas ainda dependemos muito de importação de equipamento. Então, a taxa do dólar obviamente tem um papel aí nessa desindustrialização, nessa obsolescência do nosso parque industrial de alimentos, mas eu quero crer que não é só isso, porque a gente se moderniza em outros aspectos da indústria e, às vezes, na fábrica, não.
Então, tem uma questão que é desconhecimento, a falta de conhecimento nessa alta gestão de aspectos da tecnologia de alimentos. E aí, tem um papel que é das pessoas de pesquisa e desenvolvimento, especialmente, e de operação também, de sentar-se nessa mesa transferir conhecimento para que a gente possa ter operações mais modernizadas, mais competitivas para indústria de alimentos para buscar imagens mais saudáveis.
AGÊNCIA DE NOTÍCIAS DA INDÚSTRIA – Quais são as principais dificuldades que os negócios enfrentam para se atualizar diante da necessidade de inovar?
CRISTINA LEONHARDT – Eu vejo que uma das questões é falta de planejamento estratégico, que é uma das questões que, obviamente, grandes empresas talvez não tenham, mas empresas pequenas e médias têm uma dificuldade bastante grande em fazer um planejamento estratégico.
Tanto em grandes quanto pequenas e médias empresas, eu vejo que há dificuldade em fazer um planejamento estratégico de longo prazo. Se eu, nos meus projetos de inovação estratégica, começo a falar sobre como será o mercado daqui a cinco anos e como a gente poderia começar a plantar algumas sementes agora, para daqui a cinco anos, eu causo uma certa instabilidade em responder perguntas sobre o próprio mercado em que a empresa atua.
Eu tenho bastante conhecimento no mercado de alimentos, né? Já fiz projetos em diversas categorias de alimentos, mas não sou tão especialista no mercado em que a empresa atua quanto ela mesma.
Então, existem perguntas que eu faço em um projeto de consultoria de inovação estratégica que a empresa tem que responder e eu vejo que muitas vezes isso gera bastante instabilidade e incerteza quando a gente começa a ir para o futuro, porque a gente percebe que esses executivos que estão nas nossas consultorias, muitas vezes não estão versados sobre as tendências de comportamento e de tecnologia para o futuro.
É meu papel trazer essas informações e a gente faz isso por meio de pesquisas primárias e secundárias, dependendo do projeto, mas me chama bastante atenção o quanto essa alta gestão, muitas vezes, desconhece o futuro, as previsões de futuro do seu próprio negócio, como se eles mesmos não estivessem plantando essas sementes.
O futuro é plantado hoje. Ele é uma decorrência e uma engrenagem que começa a se mexer hoje. Então as coisas que nós estamos plantando hoje, claramente vão gerar o futuro A e não o futuro B, e a gente percebe que essa alta gestão, meio que entende que esse futuro vai chegar para ela, de alguma forma, que ela vai ser pega de surpresa por esse futuro e é como se ela não participasse do processo de construção desses futuros possíveis.
Na base de todas as dificuldades de atualização dos negócios está essa deficiência na alta gestão, de entender de inovação assim. Muitas vezes a gente vê que uma alta gestão que quer lidar com a questão de inovação, como se estivesse lidando com um processo de produção ou com um processo de vendas, que são processos de rotina, com processos e resultados muito mais previsíveis e muito mais reprodutíveis do que o processo de inovação.
E aí, como essas altas gestões, de modo geral, são versadas em vendas, finanças, operações, compras e administrativo, a gente dificilmente vê numa diretoria ou numa presidência ou vice-presidência, executivos que vieram de cadeiras de inovação.
A gente vê que essa liderança sênior mesmo empresas grandes – isso é uma análise que eu fiz, inclusive, com as empresas que tem ação numa bolsa no Brasil – então, as maiores empresas de alimentos do Brasil, a gente vê que a discussão sobre a que esses executivos têm, não é com o tema de inovação. É com outros temas que, obviamente, também são importantes, mas não com o tema de inovação.
E aí, por conta disso, pela baixa experiência muitas vezes, gera um pressuposto e entendimento de que a inovação se dá por certos mecanismos que são parecidos aos mecanismos que a gente gere processos convencionais, como por exemplo, um processo de produção – o que não é verdade.
O processo de inovação exige outros modelos mentais, outros valores e exige, sim, conforto com o risco e com a incerteza. Isso é justamente o oposto que a gente quer, por exemplo, numa operação de produção. A gente quer reduzir o risco e a incerteza ao máximo possível e é justamente o oposto que eu quero da inovação.
Eu vejo que uma das dificuldades que os negócios enfrentam para se atualizar é o próprio desconhecimento da alta gestão, muitas vezes sobre processos de inovação e a gente também tem, claro, algumas questões fundamentais de como o processo educativo é realizado no Brasil. Se a gente for pensar na indústria de alimentos, a gente tem formações técnicas fantásticas no Brasil, nas áreas de engenharia, ciência e tecnologia de alimentos, porém, de modo geral essas formações não falam muito sobre aspectos do negócio.
Então, a gente gera pessoas que são bastante fluentes no que é tecnologia, mas que precisam aprender muito a amarrar essa tecnologia com as questões de negócio, também existe uma questão de dificuldade de entendimento entre as áreas técnicas da empresa, especialmente falando aí de pesquisa e desenvolvimento, e essa alta gestão, até por uma questão de linguagem e bagagem de formação que são bastante diferentes, muitas vezes entram em conflito.
Fonte: Assessoria